Piranesi, de Susanna Clarke

Falarei desse livro epistolar o mínimo possível. Sem spoilers e menos ainda do que isso, portanto, pode ler sem riscos, aqui comentarei dos sentimentos sobre o melhor lançamento do ano passado.

Mas digamos, de maneira bem rasa, que tal qual Lewis, Pullman, Carroll, Barrie, King e outros (eu inclusive), esse livro vai tratar sobre a possibilidade de outros mundos, uma “história de portal”, mas não só, quase como uma mistura dos filmes “Amnésia” (Memento, de Christopher Nolan, 2000) com “Na Natureza Selvagem” (Into the Wild, de Sean Penn, 2007), com um suspense engenhoso e vários tributos à obras de arte, enquanto fala principalmente sobre identidade (e, a partir daqui, abre-se um leque de várias camadas mais sublimes, inclusive de um olhar mais queer, mesmo com as interpretações bem abertas e não miradas num único discurso).

Construção de identidade e linguagem, personalidade e memória, cultura e sociedade, tudo isso embalado num flerte com o realismo mágico, que logo se revela uma fantasia e ficção científica de primeira, diferentemente do lugar-comum que estamos acostumados a explorar nas leituras de rotina. Uma publicação caprichada da Morro Branco, que será um prato cheio para semióticos.

Piranesi, Susanna Clarke, Editora Morro Branco

A autora do clássico moderno, queridinho entre 11 de 10 leitores, Jonathan Strange e Mr. Norrell (que eu li quase inteiro lá nos idos de 2007 e preciso retomar), depois de um longo período doente, que a deixou confinada por mais de uma década em casa (o que reflete muito no sentimento desse enredo) e finalmente conseguiu contar a história que vinha planejando desde o começo dos anos 2000 (e o publicou bem no meio da pandemia, ano passado — o que aliás, também dá muitos ressignificados para essa trama, pois muito do que vivemos em nosso confinamento, dá para enxergar na rotina do protagonista), bastante inspirada pela escrita labirintica do nosso primo Jorge Luis Borges. Um livro que certamente pede releituras e que, a cada nova leitura, uma interpretação ou pequena passagem ganhará significado ou ressignificado.

Piranesi” faz conexão ao famoso desenhista e arquiteto italiano Giovanni Battista Piranesi, conhecido especialmente por uma série de gravuras publicadas inicialmente em 1750, chamada Carceri d’invenzione, onde retratava gravuras de prisões imaginativas que ilustravam enormes subterrâneos, escadarias monumentais e estruturas labirínticas de dimensões épicas, mas aparentemente vazias de propósito ou função.

Giovanni expressava através dos labirintos seu confinamento e temores internos. Essas imagens compõem todo o cenário do livro e apelidam nosso protagonista, uma figura curiosa, de grande carisma, que mesmo sendo um homem feito, se comporta como uma criança (afinal, essa ingenuidade é quase que uma regra para algumas histórias de portal, vide os irmãos Pevensie, a protagonista Lyra Belacqua, Alice, Wendy etc), o tornando extremamente cativante. Ao mesmo tempo, extremamente inteligente, uma espécie de cientista daquele ambiente remoto, catalogando ondas, pássaros e quartos com extrema precisão.

Piranesi

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A leitura é feita através de seu diário, que vai revelando novas camadas do enredo conforme avança e Clarke consegue realizar tudo isso de maneira orgânica e instigante. Não se deixe enganar, a leitura flui, te puxa para frente e de repente acaba (de maneira justa e bela, apesar de tudo). Não pense você que é uma trama sobre o nada, pois desde o princípio ela tem muito a dizer e vai se abrindo a cada página.

Interessante também notar como a autora “adianta” para o leitor alguns detalhes que ainda não alcançaram seu protagonista, então descobrimos pormenores e começamos a sacar o que realmente está acontecendo e o que a história quer nos dizer bem antes de Piranesi descobrir. Isso aumenta a ansiedade, causa certa angústia e fortalece a narrativa, pois mesmo antevendo os passos da trama, ainda não conseguimos imaginar como tudo aquilo vai se desenrolar.

O final não importa, mesmo sendo um desfecho efetivo, pois toda a experiência é valiosa. A escrita incomum com maiúsculas, as subtramas apresentadas através de diários encontrados, a pseudociência (ou seria magia?) proposta, do Mito da Caverna ao Minotauro de Minos, de teorias da conspiração a políticas acadêmicas, o flerte com “O Sobrinho do Mago” e as premissas fantásticas da trilogia “Fronteiras do Universo” (que sempre foi uma resposta de Pullman a Lewis), mas que também pode ser levado a um debate sobre transtorno dissociativo de personalidade (com as figuras da doença e do terapeuta).

Piranesi” é um livro singular, que mexe com o leitor em diferentes camadas. Suntuoso de significados e numeroso em interpretações, é uma leitura agradável, com tom de sonho, ao mesmo tempo tranquilizador e perturbador (dependendo de onde você esteja na leitura/Casa) e maravilhoso até o fim. Insisto, não se deixe enganar, nem tudo é o que parece, mas se for, ainda será incrível.

Nome Original: Piranesi
Autor: Susanna Clarke
Editora: Morro Branco
Gênero: Fantasia, Ficção, Realismo Mágico
Ano: 2020
Número de Páginas: 232

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