Repeteco, quadrinho de Bryan Lee O’Malley
O criador de Scott Pilgrim se volta em Repeteco para uma história mais intimista, que faz um tratado sobre a passagem para os trinta anos de maneira completamente identificável, em um quadrinho cheio de lições de moral (a melhor maneira Disney, mas tão desbocado quanto Rick and Morty), realismo fantástico, culinária e uma narrativa experimental poderosíssima.
A vida de Katie vai muito bem. Ela é uma chef talentosa, dona de um restaurante de sucesso e com grandes planos para a vida. De repente, em um único dia ela perde uma grande chance de negócios; sua paquera com outro jovem chef azeda; sua melhor garçonete se machuca e um ex-namorado charmoso aparece para complicar ainda mais a situação. Quando tudo parece perdido e Katie já não enxerga mais uma solução, uma misteriosa garota aparece no meio da noite com a receita perfeita para uma segunda chance. E, assim, Katie ganha um repeteco na vida e precisará lidar com as consequências de suas melhores intenções.
Os aspectos técnicos de Repeteco
Se valendo de enredos como Feitiço do Tempo e Efeito Borboleta, o autor compõe uma trama cotidiana que bebe de fontes críveis, com diálogos realistas e que refletem a nova geração de maneira bastante natural, mantendo seu traço característico de cartum e mangá, embalado em uma narrativa colorida e muito particular, que ora emula um livro com aberturas de parágrafos e capítulos, assim como seu fechamento, deixando a graphic novel atemporal e pedindo releituras, mais pelos seus enquadramentos bem sacados (como quando ele mostra o funcionamento do porão e da cozinha do restaurante, com um ângulo visto de cima e que ao mesmo tempo conduz a história).
Fique atento também a outros elementos, como as duas moradias (o atual e o futuro restaurante); aos cogumelos e ao caldeirão; ao curioso conceito por trás do espírito do lar; ao carro; ao quarto e, principalmente, a árvore, que aparece aqui e ali e serve como simbolismo das ramificações de probabilidades e das realidades alteradas.
Ainda que o roteiro não apresente novidades dentro do tema, ele faz bom uso de seus ícones para explorar a vida de uma personagem próxima de nós. Ela fala como a gente e tem seus vários defeitos expostos. Mas vai pouco a pouco descobrindo os significados de uma verdadeira amizade, a importância de se valorizar o outro, a não cair nas armadilhas de um relacionamento abusivo, a medida que precisa continuar se focando em seus objetivos e desapegando de alguns materialismos para continuar com sua vida, que se não é imutável, é aberta para transformações, não extraordinárias, mas rotineiras. E tudo bem com isso.
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Os pontos altos da HQ estão justamente no narrador, que mesmo em off, fala o tempo todo com a protagonista, mas erra a mãos em alguns momentos ao explicar o que já está sendo mostrado, subestimando muitas vezes a inteligência de seu público. O traço continua fofinho e certeiro, e a narrativa segue ousada, mas o trabalho aqui ainda não supera o que foi executado em Scott Pilgrim, ainda que a comparação seja injusta, já que são propostas distintas.
Repeteco vale-se mais pela aula de narrativa em quadrinhos do que pela lição de moral no final. Creio que você e eu já a tenhamos aprendido antes de virar a primeira folha. Não dá para mudar o que já foi, mas dá para fazer melhor numa próxima vez.