Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis…
...ou Shang-Chi - O Senhor dos Anéis
A China é grande. Gigantesca. É o quarto maior país do mundo, mas o que a torna tão relevante é a sua população, de mais de um bilhão de pessoas. Dá pra encher mais de dois milhões e 500 mil auditórios do extinto Domingão do Faustão sem repetir chineses – o suficiente para quase 48.000 anos de programa, se a Globo fosse mais esperta e não deixasse o cara ir pra Band. Com tanta gente, o novo filme da Disney “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” tem um objetivo muito claro: faturar alto em cima do povo chinês.
Não que seja um objetivo condenável: a Disney é uma daquelas empresas capitalistas salafrárias que nos deixa imensamente satisfeitos de atirar bolos de dinheiro na fuça daquele adorável rato maldito. Então, já que eles decidiram fazer uma obra com o intuito de explorar o bolso de 1/7 da população da Terra e de qualquer nerd tonto (como eu) que já tenha decidido há muito tempo que vai entrar numa sala de cinema pra assistir qualquer porcaria que tenha um “Marvel” escrito em uma caixa vermelha antes da exibição, a torcida é que eles fizessem pelo menos um filme simpático, agradável, com umas cenas de ação legais, umas piadas bem colocadas, e uns efeitos especiais melhores que os plugins que eu instalo no Maya. Ninguém esperava um Vingadores: Ultimato, mas até mesmo os piores filmes da Marvel têm se mantido numa boa média, ela não errou feio em nada.
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis
A boa notícia é: mesmo um óbvio caça-níqueis como Shang-Chi é um filme extremamente divertido e, por que não dizer, belíssimo, principalmente nas sequências em que se presta a fazer uma ode aos filmes de artes marciais chineses.
A Fase 4
O protagonista é o herói que chegou aqui no Brasil com o nome de “O Mestre do Kung Fu”. Um gibi criado na década de 1970 com o objetivo de embarcar no sucesso das séries de TV de artes marciais da época, Shang-Chi era um daqueles personagens B, mas que vira e mexe ganhava uma pontinha como coadjuvante em alguma história do time de elite da Marvel. Se você quiser saber um pouco mais sobre o personagem e o que esperar da história, veja este texto aqui!
Com o avanço dos filmes da empresa nos cinemas, nos quais seus principais heróis foram morrendo, envelhecendo, ficando gordões, enfim, finalizando suas histórias, a empresa começa a mirar nesses heróis menos conhecidos. Mas, ao invés de trazer o filme do Namor e agradar eu e os outros três fãs do personagem, é uma jogada mais esperta mesmo ir atrás do Shang Chi e agradar um bilhão de chineses.
O personagem é o primeiro da nova leva de heróis que vai carregar a empresa nos próximos anos (descontando, é claro, a Yelena, que apareceu em Viúva Negra, mas ainda não teve sua aventura solo).
Dar continuidade a um universo tão rico não é fácil, mas a empresa já tá há mais de uma década nessa empreitada e sabe fazer as coisas: os personagens e acontecimentos passados são mencionados com frequência, às vezes de forma discreta como um detalhe em uma conversa, às vezes de forma até invasiva, adicionando personagens conhecidos no meio da história, dando apenas uma leve justificativa de sua presença.
Como sempre e com a devida dose de descrença aplicada, tudo funciona muito bem e é uma delícia embarcar novamente nesse mundo.
O novo normal
Sem o lançamento simultâneo nos streamings, Shang-Chi pode ser a oportunidade dos cinemas de terem seu público de volta às salas (já que a classificação indicativa de O Esquadrão Suicida não permitia aqueles passeios-família).
A cabine de imprensa do filme já foi uma sessão nostalgia: mesmo seguindo todos os protocolos e blá-blá-blá, os jornalistas presentes, que em sua maioria são jovens nerds, finalmente pareciam mais animados: antes da sessão, que começou com um leve atraso, três fileiras discutiam o final de The Mandalorian aos gritos, já que a separação de cadeiras os impediam de ficarem mais próximos; enquanto isso, um jornalista perguntava a outro, sentado distante e aos berros, se ele já tinha tomado a segunda dose da vacina.
O filme também é aquele mais-do-mesmo de um filme de origem da Marvel, no qual o herói enfrenta uma versão maléfica de alguém com os mesmos poderes que ele. Nada diferente de Homem de Ferro, Homem Formiga, Pantera Negra, e nada que já não era esperado também. As piadinhas são bem feitas e bem colocadas e a atriz vencedora do Globo de Ouro Awkwafina (puta nome legal, parece ter mais consoante e mais vogal do que devia ao mesmo tempo) interpreta um ótimo alívio cômico.
O maior problema do filme acaba sendo o excesso de diálogos expositivos. Talvez pretensioso demais, ele precisa apresentar muitas histórias e muitos personagens em pouco tempo, então muito da história acaba sendo passado por personagens contando para outros sobre o passado e explicando as dinâmicas daquele mundo. É muita coisa para apresentar e uma cultura totalmente nova para embarcar nessa salada maluca que é o universo cinematográfico da Marvel, então o filme segue até o final com diálogos contando como que funciona tal coisa e o que diabos são aqueles elementos que o povo que vive a oeste do Cazaquistão só conhece porque viu num quadro quando foi comer naquele restaurante chinês de mafiosos lá no bairro da Liberdade.
Ni Hao!
E bota cultura chinesa goela abaixo. O filme é a coisa mais chinesa que eu já vi desde que eu fui no casamento da minha amiga Chen, em 2018. Tem de tudo: dragões, florestas de bambu, casas de aposta de mahjong e muitas cenas lindíssimas de artes marciais. A coreografia das lutas é uma gigantesca homenagem aos filmes chineses como os do diretor Zhang Yimou: movimentos longos e lutas em meio a elementos da natureza. A câmera toma seu tempo e dança com os personagens ao invés de seguir com aqueles cortes malucos e rápidos habituais dos filmes da MCU. Isso não torna as cenas menos empolgantes, muito pelo contrário, é uma delícia ver essas técnicas aplicadas em um blockbuster de herói.
A Marvel não tem a menor vergonha de usar fórmulas cheias de macguffins, perseguições bobas e lutas que começam do nada e isso é, no fundo, um grande mérito da empresa para fazer filmes legais. Os tais dez anéis – que não são anéis, são pulseiras, tem que rever esse negócio aí quando for lançar bijuteria inspirada no filme – ganham seu espaço e, tal qual o personagem, têm tudo para serem importantes nos próximos passos da empresa.
Assim como todo o resto da cultura chinesa que ainda não foi explorado. Não faltaria assunto para os próximos filmes: comunismo, China In Box, opressão ao Tibet, censura, covid, suicídio em fábricas de iPhone… Nada me agradaria mais do que ver o Doutor Estranho lutando contra um exército de pandas gigantes. Mas é mais provável que a empresa venha com uma nova atração na Disney Shanghai e um filme em que o vilão seja de outro planeta. Citar esses temas pode desagradar os chineses e isso faz mal aos negócios.
E, até agora, a união entre os maiores heróis do cinema e o mais populoso país do mundo parece que acabou sendo um negócio da China – e todo mundo saiu ganhando nessa. Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis estreia dia 02 de setembro nos cinemas.