Watchmen – tributo a HQ original e ressignificado
Série presta tributo ao quadrinho original, enquanto ressignifica os próprios simbolismos
Quando o produtor e roteirista Damon Lindelof disse que daria continuidade na HBO a graphic novel e marco dos quadrinhos mundiais criada por Alan Moore, praticamente todos torceram o nariz. Se nem mesmo os novos gibis desse universo inventados pela DC conseguem se justificar, se não somente do lucro pelo lucro, quem dirá uma série que se propusesse a seguir cronologicamente os eventos de Watchmen, no presente em 2019.
Mas o que Lindelof, enquanto criador, realiza por aqui é tudo o que outros da mesma estirpe foram incapazes até agora, quando o assunto é recriar um material com uma fanbase pesada, de um texto rico em mitologia, personagens e trama, ao usar de um material que sempre foi politizado e dissertava sobre tempo e espaço, existencialismo, metaficção e muito, muito mais (eu não pincelei nem a metade).
Para tanto, o showrunner se valeu do espírito da obra, preservando todos seus elementos, sem jamais desrespeitá-la. Assim, traz à tona um texto extremamente contemporâneo e relevante, de assuntos antigos que jamais morreram. Preconceito e discursos de ódio, especialmente os raciais. Se vale então de um evento trágico, histórico e real: o Massacre de Tulsa em 1921, como ponto de partida para um enredo inteligente, com texto rico e cíclico, tal qual a obra de Moore já realizava em um auto espelhamento, de quando o começo e o fim são semelhantes, ainda mais quando invertidos.
Watchmen
Os holofotes são levados para a temática do racismo, que permeia a minissérie do começo ao fim (que a princípio se encerra em si e não terá continuidade). Damon Lindelof aproveita os elementos da HQ original não só como fanservice ou easter-egg, mas também como material para ser utilizado ou replicado por aqui. Por isso, Looking Glass levanta metade da máscara para comer feijão em lata tal qual Roscharch fazia, e Sister Night começa a quebrar dedos de um bandido para retirar informações.
Mas esses elementos também são reprisados de outras maneiras, todas sagazes e bem contextualizadas. Assim como o legado de Ozymandias, uma rotineira “chuva de lulas” pelos EUA, a verdadeira localização do Dr. Manhattan (não é Marte, afinal), a nave Archie do Coruja servindo de modelo para naves policiais nos tempos atuais, entre outras coisas.
Além disso, incluindo uma origem para o Justiça Encapuzada (que é um dos mistérios mais intrigantes deixados pela graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons), que não só conversa diretamente com o seriado, como ressignifica de maneira inteligente boa parte do escopo da obra. Coloca o primeiro mascarado sendo quem é (e que sinceramente, é a melhor reviravolta que a trama oferece). De todos as motivações de heróis que já vi nessa vida (nos cinemas ou nos quadrinhos), essa é de longe a melhor. Sinceramente.
Humor negro
Com um time afiado de diretores, Watchmen fornece 8 episódios de 1 hora com identidades próprias, mantendo a suntuosidade da produção em alta. Repleta de gravidade e suspense de um lado e cinismo e humor negro do outro (principalmente com as passagens absurdistas envolvendo Adrian Veidt); colocando a Sétima Kavalaria como vilões fáceis de detestar (apesar de serem claramente uma continuação da KKK, eles também representam o racista comum, aquele nosso vizinho que acha que o homem hétero branco sofre preconceito) – e assim como todo extremista, faz uso de uma imagem icônica, distorcendo seu sentido para justificar seus atos (no caso aqui, o símbolo de Roscharch, que apesar de nunca ter sido exemplar, ao menos não era um supremacista branco).
Ainda traz outras figuras intrigantes para desequilibrar a balança desse novo jogo, como a trilionária gênia Lady Trieu, o próprio Ozymandias, uma versão madura e bem-vinda da Espectral na forma da Agente Blake, e uma nova interpretação do Dr. Manhattan (que também oferece um episódio exemplar, fragmentado e que sabe como poucos explicar os poderes do azulão). Entretanto, tal qual seu homem escorregadio bueiro abaixo, a série esquece de revelar quem é tal mascarado, assim como outros personagens ao longo da história.
Elenco
O elenco, por sua vez, brilha sozinho, a começar pela protagonista vivida por Regina King, que consegue trazer representatividade feminina e racial sem panfletagem gratuita. Ela mostra uma força no olhar, nos gestos e nos diálogos, que a tornam desde já uma das melhores personagens da cultura pop atual.
Jeremy Irons se diverte com sua versão meio louca, meio excêntrica de Ozymandias; Jean Smart não deve nada a outras senhoras da ficção que estão sendo revividas pelas produções do momento (a exemplo da Sarah Connor de Linda Hamilton ou Laurie Strode de Jamie Lee Curtis), enquanto Louis Gosset Jr., Tim Blake Nelson e Yahya Abdul-Mateen II ganham espaços para momentos bastante especiais, em uma série que respeita suas origens, mas conversa com um novo público, seja fã do quadrinho ou não, e tem muito a dizer sobre o atual estado do mundo, tal qual a graphic novel fez no passado.
Dessa maneira, a nova produção de Watchmen se justifica tanto como uma autêntica continuação, como também um material autoral, que é atual, ousado e inteligente. Aponta para as feridas, mas não abre mão de seu valor de entretenimento. Eis um ponto de partida para como as coisas deveriam funcionar daqui em diante.