Espírito Perdido, de P.J. Maia – Entrevista com o autor
Em um tempo longínquo ao nosso, a jovem Keana espera por atravessar uma tradicional cerimônia na qual adolescentes como ela têm sua natureza divina despertada. Tendo sido rejeitada, Keana se pergunta se sua origem singular estaria relacionada a esse fato, pois nasceu fora do país de Divagar. A jornada que Keana empreenderá irá desvelar os segredos do mundo que a cerca e transformar seu olhar sobre a as desigualdades da sociedade que habita de forma definitiva. Conheça Espírito Perdido.
Uma premissa como essa não ficaria deslocada em um dos muitos romances sobre futuros distópicos que vêm pipocando nos últimos anos, mas o autor brasileiro radicado nos EUA Paulo José Maia resolveu dar um twist de originalidade. Ele situou seu romance, intitulado Espírito Perdido, nos primórdios da história da humanidade, no que conhecemos coloquialmente como Idade da Pedra.
Simpático, o autor conversou com o Vitamina Nerd em uma sessão de autógrafos promovida pela Editora
Labrador, responsável por trazer o romance para as livrarias brasileiras dois meses após sua publicação original em inglês pela Amazon. Em um papo ligeiro, Maia contou sobre seu processo de criação, as temáticas presentes no livro e como o advento da autopublicação está ajudando jovens autores como ele a ganhar espaço no mercado literário. Então confira!
A trajetória de Espírito Perdido tem uma história interessante: autopublicado em inglês nos EUA e agora ganhando uma tradução brasileira…
Na verdade a minha trajetória é um pouco atípica. Na adolescência morei um tempo nos Estados Unidos e aprendi a escrever com uma professora de literatura. Depois voltei a morar no Brasil para fazer faculdade. E então voltei para os Estados Unidos para estudar cinema e acabei morando lá por quatro anos.
Quando eu retornei para o Brasil, eu estava muito mais habituado a escrever, ainda que por hobby, em inglês. Voltar para o meu país de origem depois de tanto tempo me fez sentir deslocado. Tive dificuldade de me reencontrar. Foi então que uma amiga me sugeriu que eu botasse essas minhas angústias no papel através de uma história.
Aos poucos, sem pretensão alguma de publicar, comecei a escrever a história porque eu queria trabalhar com essas sensações. Como encontrar seu lugar no mundo? O que significa se sentir em casa? Ou como é estar em um lugar que você considera um paraíso, mas sentir que esse não é seu lugar? As páginas então começaram a sair, em inglês mesmo, como um alívio terapêutico. Quando dei por mim eu já tinha um livro, grande até. Pensei comigo mesmo: “Bom, vamos seguir em frente, né? Em algum momento mais pra frente eu traduzo.”
Achei curiosa a escolha de uma protagonista feminina para canalizar esses seus anseios, já que ainda existe um preconceito muito grande com histórias sobre personagens mulheres, que são consideradas “de nicho” e não jornadas universais com as quais todo o mundo, inclusive homens, podem se identificar. O que o fez escolher uma personagem feminina como protagonista?
Eu sou muito sensível às questões de representatividade hoje em dia. Acredito que é preciso contar histórias que propiciem voz e identificação a um público que talvez não tenha tanta representatividade. Eu quis contar a história do ponto de vista de uma protagonista feminina porque eu queria ler um livro interessante de fantasia que trouxesse uma mulher no papel principal. Eu queria também de certa forma jogar com a minha voz de autor em tentar dar voz a pessoas diferentes.
Creio que o mundo passa por um momento em que é necessário ampliar nossa base de referências. As pessoas estão querendo se sentir representadas. As amizades mais íntimas que eu tenho são com mulheres. Por isso foi muito natural quando comecei a escrever a Keana, minha protagonista, que surgiu com vontade de falar. Foi quando eu disse a mim mesmo: “não vou ficar esperando um personagem masculino chegar e tomar as rédeas. Ela que veio primeiro, ela que quer falar, e é ela que leva a história adiante.”
Lendo a sinopse do livro, que ainda não li, me pareceu que o tema do privilégio (e a falta de) é um elemento constante no enredo. A que atribui a presença deste tema?
Olha, eu diria que o livro tem três temas centrais: preconceito, privilégio e privacidade. Por mais que a história se passe em uma pré-história mística, era meu objetivo criar um elo, através do sobrenatural, com questões presentes. De modo que o público contemporâneo, com todas as questões modernas que o cercam, conseguisse trabalhar com essa abstração.
Creio que vivemos uma era em que pessoas que nunca tiveram voz estão começando a ter. Está caindo por terra essa fantasia de que o mundo é um lugar belo e justo. Por ter tido a experiência de morar em um país de primeiro mundo, eu consegui transitar entre sociedades consideradas justas ou injustas. Então me veio essa ideia de contar a história de jovens que viveram uma vida inteira acobertados. No caso são deuses que não ficam doentes e não morrem nem sentem fome. E há o modo como reagem à descoberta de que o mundo não é um lugar perfeito, que a morte, a doença, e a pobreza existem.
De certa forma o livro tem esse papel. Apontar privilégios e deparar pessoas privilegiadas com uma realidade que fere a ingenuidade delas. É também um livro que se propõe a descortinar a inocência. E a adolescência é o período em que esse processo começa a se desenrolar. Há também uma subtrama política bem trabalhada. Por mais que não seja especificamente uma fantasia política, em relação a essa questão dos deuses dominando os mortais, é passível de se traçar paralelos com o mundo real.
Que inclusive é um assunto bastante relevante para o nosso tempo…
Espero que sim. Espero que esses temas encontrem alguma ressonância com o público, porque foi muito prazeroso de escrever. E a expectativa é que seja prazeroso de se ler também.
Outra coisa que me chamou atenção foi o pano de fundo que você escolheu para o seu enredo, que é um cenário relativamente inexplorado no gênero da fantasia: a pré-história. O que o fez optar por esse background ao invés dos universos tradicionais da fantasia, como a idade média ou a Inglaterra vitoriana?
Sempre tive curiosidade sobre questões ancestrais e sobre a origem da humanidade. Me chamou muito a atenção desde cedo de que a mitologia surja para explicar os mistérios do passado que não deixaram rastros. Sempre fui fã de fantasia, mas nunca li nada muito parecido com essa temática dentro do gênero. Cheguei a ler um romance chamado The Clan of The Cave Bear, que é um livro bem bacana que se passa na pré-história, mas que tem uma pegada diferente.
O mundo pré-histórico é fascinante, um mundo que as pessoas não conhecem bem. É um mundo real que tem uma rica mitologia. E isso me fez pensar: e se a gente pudesse, através da fantasia, fazer uma ponte entre os mistérios do passado e o mundo de hoje? Então eu comecei a estudar muito sobre Neandertais, que são bem representados no livro, sobre as questões de glaciação. Inclusive trabalhei com uma paleogeóloga como consultora. E a gente começou a tentar trazer verdade pra dentro desse mundo fantástico.
A ideia é que, por mais que saibamos se tratar de uma fantasia, tecnicamente este é um livro de fantasia
científica, no sentido que há todo um estudo para aterrar o conteúdo dele na realidade, afim de trazer aquela dúvida “e se?”.
Este livro foi originalmente autopublicado em inglês pela Amazon e só agora está ganhando uma versão em português através da Editora Labrador. Como você acha que as novas ferramentas de autopublicação estão mudando o modo como consumimos literatura?
Eu acho muito interessante porque, ao mesmo tempo que a publicação tradicional traz um certo crivo para o leitor, por ser um trabalho que foi selecionado dentre tantos outros, a autopublicação é uma forma bem mais democrática de se poder seguir um impulso criativo. De poder dizer “eu tenho uma história para contar e eu vou ser teimoso, vou contar até o fim, até levá-la ao público”.
Eu tentei as vias tradicionais nos EUA e creio que lá, por ser um mercado onde a fantasia é muito borbulhante e cheia de autores novos surgindo a cada instante, o fato de ser uma obra estrangeira não ajuda a chamar atenção. Acho que a gente [brasileiros] tem uma relação de curiosidade com produtos internacionais bem maior por aqui. A autopublicação é uma ferramenta maravilhosa porque ela permite às pessoas que têm
histórias para contar poder contar suas histórias e ter uma chance de alcançar o seu público. Sou muito grato à autopublicação e recomendo para as pessoas que gostam de contar histórias. Se você tem uma história dentro da cabeça, seja teimoso. Vá até o fim e tente a via que você achar mais adequada. Seja profissional, seja via independente, o importante para quem conta histórias é que a história seja ouvida.
Espírito Perdido está à venda em português em cópia física e digital pela Livraria Cultura, e em inglês em cópia física e digital pela Amazon sob o título de The Missing Spirit.