Mais que Especiais – California Filmes
A sequência de abertura do filme Mais Que Especiais mostra uma garotinha ruiva, Emilie (Suzanne-Marie Gabriell), correndo desenfreada pelas ruas de uma cidade. Intercalados com os créditos iniciais, vemos recortes de sua fuga entre transeuntes confusos. Dois homens, no encalço da garota, conseguem alcançá-la, restringindo seus braços contra o tronco enquanto tentam acalmá-la segurando-a contra o chão. Emilie é autista, e seus cuidadores estão lhe aplicando uma técnica de contenção comum em surtos como este.
Com todo o enfoque dado à garota nestes segundos iniciais, talvez fosse de se esperar que ela fosse algum personagem central no enredo, talvez até um agente ativo em sua movimentação dada a maneira dinâmica com a qual o filme escolheu apresentá-la. Não é o que acontece. Emilie – ou melhor, seu surto – é a maneira que a fita julgou mais apropriada para apresentar os autistas e seu mundo antes de jogar a personagem para escanteio. Como uma ferramenta de um uso só ela já cumpriu sua função principal no filme. Hora de
abrir caminho para os verdadeiros protagonistas.
Mais que Especiais
Esta é a uma versão ficcionalizada da historia real de dois amigos – curiosamente, um judeu e um muçulmano -, Bruno e Malik (Vincent Cassel e Reda Kateb, respectivamente), que dirigem, cada um, seu próprio abrigo para jovens portadores de autismo severo. Unindo-se a ambos como deuteragonista há o jovem Dylan (Bryan Mialoundama), um cuidador novato que por vezes funciona como os olhos e ouvidos da audiência no que se trata do setor de cuidados com pessoas portadoras de necessidades especiais.
Episódico e sem um enredo sólido, o fiapo de trama no qual o filme se ancora trata de um processo de inspeção do governo, que ameaça fechar ambas as instituições se suas funções forem consideradas irregulares. Um pretexto, não se demora a perceber, para que personagens possam dar longos e didáticos depoimentos sobre suas experiências com pessoas autistas; o que nos leva a questionar por que, raios, os diretores decidiram por não fazer de um filme com estes atributos um documentário de uma vez por todas, sendo que até a direção, crua e objetiva, remete a de uma peça documental, sem os floreios reservados a uma dramatização que, por sua própria natureza, procuraria conferir certa subjetividade estética aos eventos sendo apresentados.
Acesse aqui nossa seção de dramas
Subjetividade, aliás, é uma palavra-chave para entender onde o filme falha para com o demográfico em que baseia sua premissa. Sim, o filme deixa claro que os autistas sendo retratados aqui são de um tipo severo e que não representam a comunidade autista como um todo, e eu acredito firmemente que deixar de representar certos membros de uma classe marginalizada que se aproximam de certos estereótipos por receio de reforçar tais estereótipos é um desserviço para com essas pessoas, que também merecem ter suas histórias contadas.
O problema é que a condição extrema dos autistas aqui representados não justifica a falta de interioridade dos personagens autistas em questão, reduzindo-os a instrumentos para mover as histórias dos personagens neurotípicos da trama – algo evidenciado pelos enquadramentos que priorizam os cuidadores em relação aos pacientes com autismo.
Por que não fazer um doc?
Um caso em particular é emblemático: Valentim (Marco Locatelli), cujos frequentes ataques de raiva fazem com que ele precise usar um capacete acolchoado o tempo todo para sua própria proteção. A natureza do acessório, que envolve a totalidade de sua cabeça exceto pelo rosto e cocuruto, torna quase impossível vislumbrar suas expressões em qualquer ângulo que não seja um (raro) frontal. Por conta disso, o personagem fica sendo representado em cena quase como um capacete ambulante e sem rosto, balançando para frente e para trás com seus contínuos ataques de raiva – um tipo sutil de desumanização.
Esquemático, tedioso e sem motivo algum para ter sido idealizado em formato de ficção, Mais que Especiais parece se esforçar para se tornar para os neuroatípicos o que Histórias Cruzadas é para os negros: uma peça de inspiração rasa que se ancora em uma classe marginalizada para criar uma história feita por e para pessoas que a ela não pertencem, validando, através de seus protagonistas, seu próprio senso de benevolência. Tudo isso talvez fosse desculpável se a história da dupla de cuidadores fosse suficientemente interessante para justificar ser contada – e contada com o foco em ambos. Não é.