O Segredo Além do Jardim, um conto de fadas raiz
Linda, sombria e única, a minissérie O Segredo Além do Jardim acompanha dois irmãos que tentam achar o caminho de volta para casa, enquanto viajam por uma terra misteriosa. Eles recebem auxílio de um sábio lenhador, que lhes dá orientações, e de um pássaro azul. Esta é uma produção completamente singular da Cartoon Network, onde definitivamente nada é o que parece. Em 10 episódios, cria-se um universo forte, marcante, inteligente e bem desenvolvido. É assustador, mas é engraçado. É estranho, mas é recompensador.
O criador, Patrick McHale, já havia trabalhado em As Trapalhadas de Flapjack (que certamente colaborou pelo senso estético aqui) e em 5 temporadas de Hora de Aventura (que é tão ousado quanto essa animação, tematicamente falando). Resgatando elementos de desenhos animados antigos, a produção tem um forte ar retrô. Inclusive nas telas de abertura, que ficaram clássicas nas mãos de Walt Disney e suas “Merry Melodies”; mas também remetem às páginas de abertura de livros de contos de fadas.
O autor realiza uma grande homenagem ao gênero em vários níveis, que pode ser identificado pelo público infantil. Sendo assim, os irmãos Wirt e Greg se perdem na floresta tal qual João e Maria; o chapeuzinho de duende do mais velho é vermelho; e não se esqueçam do Lenhador! Existem bruxas que parecem retiradas de A Viagem de Chihiro, mas que são claramente inspiradas nas de O Mágico de Oz. Inúmeros coadjuvantes saltaram diretamente das Fábulas de Esopo. Temos uma Senhora Ganso, sapos e guaxinins antropomórficos, e até mesmo um Vento Norte (que você já deve ter lido em “O Vento Norte e o Sol”… de Esopo).
O Segredo Além do Jardim
A animação traz um traço fofo e delicado na figura dos personagens humanos. Estes são inspirados evidentemente em livros infantis, principalmente os europeus. Os cenários são belíssimos, quase como pinturas em aquarela. Ainda que a maior parte fique entre a névoa e a noite, há um parentesco inevitável com o game indie Limbo. Mas não só pela estética, como também pelo conceito geral. McHale já comentou sobre sua inspiração nas obras de Gustave Doré, mas nunca assumiu a metáfora com A Divina Comédia, a qual essa história recria de um jeito doce, ainda que sinistramente.
Tudo, praticamente tudo o que está em tela, foi pensado minuciosamente. A abertura mostra vários personagens importantes, e muitos deles voltam a aparecer nos créditos após o último episódio; pequenas iconografias espalhadas aqui e ali; até as reveladoras músicas. Elas dizem mais do que gostaríamos de perceber, mas só vamos notar quando tudo tiver terminado.
Se não se importa, continue lendo…
Dessa maneira, O Segredo Além do Jardim não é só uma encantadora homenagem aos contos de fadas e fábulas. Inclusive em seu viés moral e cruel, intrínseco àquelas tramas orais. É uma jornada de redenção. Dois garotos morrem e ganham a chance de evoluírem em um limbo, subindo ou descendo de nível a cada episódio. Não é “teoria de fã” notar os 10 círculos do inferno quase que retratados fielmente nos 10 episódios. Vão da gula à ganância, e o cão empacando a porta de uma taverna como uma metáfora de Cérberus. Além das figuras da taverna não terem nomes, apenas rótulos. Ou seja, o Bandido, o Açougueiro, o Mestre e o Aprendiz, o Alfaiate, são claras entidades que não seguiram adiante e pararam naquele círculo.
O Lenhador que não sabe lidar com o luto pela morte da filha, a Fera representando Lúcifer, a professora suicida desapontada pelo abandono do amado, a moça que fantasiou uma transformação dela e da família em pássaros, os colonos da colheita que não conseguem mais sair do primeiro nível por não terem evoluído, Beatrice (que não por acaso é o mesmo nome da moça que Dante escreveu) etc.
Há várias falas e músicas que apontam pelo desfecho trágico dos dois meio-irmãos. Enquanto Wirt menosprezava o mais novo, Greg tinha impulsos com furto (como a pedra que ele roubou do jardim de uma vizinha no mundo real). Em dado momento, Wirt assume que eles estão fingindo a volta para casa, e depois, em outro episódio, lamenta não ter valorizado melhor o irmão “em vida”.
Que sinistro…
Aos poucos, as crianças vão tomando consciência de sua condição. Após brincarem num Halloween com outros colegas (provavelmente nos anos 80, já que existiam fitas cassete), um mal entendido faz com que ambos se acidentem, caiam num lago e se afoguem. Nas crenças cristãs, o “outro lado” (aqui chamado de Desconhecido) tem elementos punitivos de acordo com os 7 pecados capitais, além dos níveis Inferno, Purgatório e então Paraíso (com o qual Greg flerta em dado episódio e tem a chance de ficar, mas teria de abandonar o irmão para trás, já que o outro havia se perdido em si mesmo).
As canções, por mais belas e deliciosas que sejam na maior parte do tempo, também são indicativos da tragédia que os acometeu. O desfecho em “final feliz” é apenas uma fantasia do que eles gostariam que tivesse acontecido, caso alguém os salvasse há tempo. Em vários episódios, vemos Wirt repetir a cena de sua morte, emergindo em um lago gelado.
É importante reparar, por fim, no uso de uma vinheta radial ao redor dos personagens, dos cenários, nas aberturas e nos créditos, e quase o tempo todo. No último frame do episódio final, vemos uma figura deslocada no hospital, um pato com máscara, olhando para nós, espectadores. Não sabe-se se é Deus ou outro, mas ele é certamente o narrador e o único que viu tudo o que aconteceu do começo ao fim. De certa forma, representando o próprio espectador.
Gostou?
Mesmo assim, com todos esses elementos sinistros e metáforas sobre vida e morte, O Segredo Além do Jardim é uma animação encantadora. Pode funcionar com as crianças pelo visual fofo e músicas cativantes, mas vai arrebatar o público adulto pelas camadas sem fim de obra-prima executadas por aqui.