Tigre, Tigre – Autobiografia de Margaux Fragoso
O relato de uma sobrevivente
Tigre, Tigre, publicado em 2011, é um livro autobiográfico da americana Margaux Fragoso. No livro ela narra a sua relação com um amigo da família, Peter.
A primeira coisa que se deve saber sobre Tigre, Tigre é que esse não é um livro fácil. Aliás, muito pelo contrário, parece que cada página do livro é uma paulada.
Peter e Margaux
Margaux conheceu Peter na piscina pública da cidade. Ela tinha apenas 7 anos e ele 51. Margaux não sabia na ocasião, mas Peter estava na piscina justamente à procura de uma criança.
A mãe de Margaux, que a acompanhava, também gostou muito de Peter. Ele era um homem carismático e convincente. Então não foi difícil para que Peter seduzisse tanto a menina quanto a mãe.
Logo Margaux estava passando o dia sozinha, na casa de Peter e completamente nas mãos dele.
Tigre, Tigre
A relação entre Peter e Margaux é abusiva e criminosa, mas também é complexa. Nem a autora, que narra o livro em primeira pessoa, consegue explicar direito.
O que ela narra nas páginas de Tigre, Tigre não é só o abuso que ela sofreu nas mãos de Peter por 15 anos. Mas também tudo que a levou a isso.
Margaux era filha de uma mãe com depressão e de um pai extremamente rígido que dizia sempre que ela era culpada pela doença mental da sua mãe, que se agravou depois do parto de Margaux. A auto estima de Margaux era inexistente e ela se sentia completamente ignorada em casa. Mais do que isso, ela sentia a necessidade de não ficar em casa, para não ter que lidar com os problemas que lá estavam.
A mãe de Margaux também sempre a incentivava a ir para casa de Peter, pois não via maldade no homem. Margaux era a presa perfeita para um predador como Peter e ele naturalmente percebe isso quando a vê na piscina pública.
Um dos motivos que fazem Margaux cair nas mãos de Peter é que ele lhe dá toda a atenção que ela não tem em casa. Ele a escuta e passa tempo com ela. E diferentemente de seu pai, não a culpa de nada. Não demora muito para que ele a convença a fazer as coisas que ele quer.
Relação de amor e ódio
Justamente por narrar uma história real, Tigre Tigre é muito diferente de qualquer outro livro que fale sobre pedofilia e abuso. O começo da relação de Margaux e Peter pode parecer clássico e comum, mas os sentimentos de Margaux são muito diferentes.
O que ela conta no livro é uma relação de amor e ódio. Durante muito tempo ela acredita no amor de Peter e que ele é a única pessoa no mundo que a ama de verdade. Já que ela não recebe amor por parte de seus pais, então, ela naturalmente o ama.
Ela escreveu o livro já com 22 anos, depois que soube que Peter cometeu suicídio, justamente porque sentiu que precisava, finalmente, lidar e se libertar dos seus traumas. Ela reflete sobre o que aconteceu com ela e conclui que um pouco do que ela sentia por Peter era provavelmente gratidão por ele a notar. Mas que ela também sentia amor, um amor doentio, sem dúvida, mas amor.
Um assunto muito complicado
Esse depoimento difere da maioria dos livros ficcionais que falam sobre o assunto, mas não deixa de ser um ponto de vista interessante e relevante. Margaux inclusive defende que é muito mais fácil combater a pedofilia, quando se entende que o agressor não é aquele monstro mítico. Que ele muitas vezes é alguém querido e próximo, e que os sentimentos da vítima podem estar tão entrelaçados, que ela mesma não consegue perceber que aquilo é abuso.
É só mais tarde, quando Margaux já é adolescente e começa a conhecer e se relacionar com garotos da sua idade que ela começa a perceber o que Peter fez com ela. É também nesse momento que ela começa a se sentir suja e arruinada. Assim, ela continua guardando esse segredo. Primeiro por vergonha. Depois para poupar seus pais da dor de saberem que algo tão terrível aconteceu com sua filha. E assim, automaticamente poupando Peter e continuando ligada ao seu abusador.
Lolita da vida real
Na época de seu lançamento, Tigre, Tigre foi considerado por muitos críticos uma Lolita da vida real ou ainda um Lolita do ponto de vista da vítima. Os temas são certamente parecidos, mas a abordagem é bem diferente. Humbert Humbert, o narrador de Lolita, tenta manipular o leitor o tempo inteiro para que acreditemos que tudo partiu de Lolita. Já em Tigre, Tigre, Margaux não faz isso.
Em muitos momentos, ela dá razão a Peter. Ainda mais quando narra as suas memórias de infância, onde Peter era um herói para ela. E em muitos momentos, ela narra a culpa que sente por diversas situações, mesmo que ela não seja culpada pelos abusos que sofreu.
Tigre, Tigre é um livro pesado não só pelo tema, que é terrível, doloroso e muito mais assustador que qualquer história de terror. Mas também porque tem cenas explícitas de sexo, envolvendo Margaux e Peter. Para qualquer pessoa, essas descrições são difíceis de ler, por isso é muito difícil não sair abalado da leitura de Tigre, Tigre.
As consequências
Margaux diz que embora ela tenha conseguido lidar com o abuso, ela jamais o superou. Que isso sempre vai doer, de alguma maneira. Mas que ao escrever o livro, ela conseguiu se livrar de alguns dos seus demônios, entender como ela acabou nas mãos de Peter e por fim, perdoar seus pais pelas negligências que a levaram ao seu agressor.
Durante as pesquisas para escrever esse texto, eu descobri que Margaux faleceu no ano passado, de câncer no ovário. O que, de uma certa maneira, pode ser relacionado com o abuso que sofreu e com a tristeza que guardou durante anos. A própria autora diz que muitas crianças abusadas lidam com a sexualidade na vida adulta de duas formas diferentes: acreditando que a sexualidade pertence exclusivamente ao seu abusador e mais tarde, a outros que virão ou que a sua sexualidade simplesmente não existe. De uma maneira ou de outra, o trauma permanece por toda a vida.
É terrivel que Margaux tenha falecido tão cedo (38 anos), assim como a sua história de vida. Mas o que fica para nós com a leitura de seu único romance não é só tristeza e raiva por Peter. São também as ideias que Margaux defendia em relação ao combate ao abuso infantil. Como a importância da educação sexual, para que as crianças saibam reconhecer o abuso; a confiança entre pais e filhos, para que as crianças não tenham medo de contar caso algo aconteça; e a abertura dentro de casa para falar sobre sexo, sem tornar isso tabu.