Capitã Marvel, um voo solo interessante
Uma das maiores super-heroínas da Marvel (mas nem de longe a mais conhecida), Capitã Marvel tinha uma tarefa ingrata nas telonas. Ao se passar em 1996, precisava preparar terreno para o que viria a ser os Vingadores como os conhecemos em 2012. E também amarrar algumas pontas soltas de outros filmes-solo da Marvel. A medida que, por fim, necessitaria se encaixar nos eventos pós-Guerra Infinita, enquanto entregava mais uma história de origem e sua própria jornada.
Além disso, teria que enfrentar a fúria de “nerds” misóginos e machistas que não suportam a ideia de uma mulher extremamente poderosa e independente estrelando um filme de uma produtora que, até então, tinha apenas privilegiado seus garotões. Sim, Mulher-Maravilha foi brilhante em 2017 pela Warner, mas aquela era uma figura famosa há décadas e chegou no momento de uma iniciação de longas compartilhados da DC. Já Capitã Marvel aporta para um desfecho. Conta com bem menos fama e um poder de fogo que poderia facilmente derrubar Superman, se pertencessem ao mesmo mundo.
Anna Boden e Ryan Fleck contam com poucos filmes no currículo e nenhum realmente relevante. A Marvel sempre apostou em diretores de outros gêneros, geralmente comédia ou juvenil. Irmãos Russo, James Gunn e até mesmo Jon Favreau, para assim colocá-los em um novo terreno a explorar. A dupla se sai bem, imprimindo certa personalidade à produção. Ora com ares indies, ora suntuosa, entregando as melhores sequências de ação (à lá Star Wars).
Capitã Marvel
Unidos com a roteirista Geneva Robertson-Dworet, eles conseguem assim conceber uma história de origem diferente do que estávamos acostumados em outros filmes do MCU. Com uma narrativa fragmentada e não-linear, conhecemos Vers, uma agente espacial da Starforce (pertencente aos Kree, já apresentados no primeiro Guardiões da Galáxia), que após uma missão contra a raça inimiga Skrull, acaba caindo na terra, conhecendo Nick Fury e reavendo todo seu passado esquecido, em uma vibe Jason Bourne, que funciona na escala de aventura da personagem.
Em alguns momentos, a trama fica truncada por conta do vaivém nas memórias. E acaba nunca desenvolvendo tão bem o background da protagonista. Por isso, é no presente que Carol Danvers se prova enquanto personagem. Com um perfil desconfiado e doce, ao mesmo tempo com humor próprio, a moça é uma figura bastante autêntica. E jamais repete os cacoetes de Tony Stark ou Peter Quill.
Brie Larson passa longe de ser a atriz oscarizada como acompanhamos e parece estar atuando para crianças. Mas depois que acostuma-se com isso, compreende-se a proposta galhofa de seu papel. Ela tem presença e Danvers parece ter sido feita na medida para a estrela. Não desaponta jamais nas cenas de luta ou quando tem de usar os poderes (que deixariam Thor no chinelo).
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Samuel L. Jackson apresenta um Nick Fury improvável, que pode soar bastante destoante da figura irônica e sagaz como conhecemos. Mas a matemática não é difícil de entender por aqui. O homem está em começo de carreira na SHIELD, ainda não tinha visto nada fantástico. E, qualquer pessoa, seja durona ou não, se derrete com gatos. Tanto é que, se observar atentamente, no desfecho, quando ele está na agência, seu comportamento é um pouco mais sério, afinal ele se porta de maneira diferente quando está a trabalho e quando está mais a vontade (mesmo que em missão).
A explicação da perda do seu olho é hilária e besta, mas funciona na leveza que o filme encontra entre tantos mistérios e corre-corre. Afinal, se tratando de um Bourne com super-poderes, Capitã Marvel traz muito desse clima de perseguição, mistério e desconfiança no ar, que logo dá palco para a ficção científica da melhor qualidade.
Voltando ao elenco
Lashana Lynch é o coração do filme como Maria Rambeau (e sua filhinha Monica também tem brilho e doçura própria). Jude Law e Annette Bening estão apenas operantes, mas funcionam na narrativa, ainda que a atriz veterana possa dar um nó na cabeça de muita gente, com sua interpretação “dúbia”, principalmente perto do final. De qualquer forma, o Líder Skrull Talos é o grande destaque aqui. Ben Mendelsohn fica extremamente à vontade e entrega um dos personagens mais improváveis do MCU, onde realmente “nada é o que parece”.
É compreensível, portanto, que uma parcela dos nerds se revolte com o filme, considerando que jamais ocorrerá uma guerra Kree x Skrull. A Marvel nunca intencionou isso e só utilizou os alienígenas transmorfos para o discurso de refugiados. O que funcionou de maneira bastante interessante nesse momento dos EUA.
Femininista sem ser panfletário, a Carol de Larson é uma mulher independente, forte e corajosa. Não há qualquer dependência romântica ou de outra categoria e isso é realizado de maneira natural no longa, não soando nada gratuito. A evolução natural de seus poderes ocorre à medida em que ela descobre mais sobre si mesma. E quando a vemos brilhando e voando e explodindo tudo pelo espaço, é catártico.
Considerações finais
O filme poderia ser menos escuro e poderia desenvolver melhor o passado da protagonista. Poderia também ter trabalhado melhor a Starforce (que é quase esquecível, incluindo aí as pontas desperdiçadas de Korath e Ronan). Poderia ter trabalhado melhor a figura de um vilão e usado melhor os anos 90 (temos músicas e elementos da década, mas nada além do protocolo). Mas a obra surgiu para amarrar várias pontas soltas e estabelecer um novo patamar para o Universo Marvel antes do fim, em Ultimato. Afinal, Carol Danvers é provavelmente a arma final contra Thanos.
Todas as piadas de gato funcionam (inclusive a engraçadíssima da cena pós-créditos), as cenas de luta tem uma física coesa e impactante (do mesmo nível que Capitão América: Soldado Invernal), com sequências de ação e computação gráfica na medida (que não desapontam e se alinham com o que vimos nas últimas produções), além de saber dosar muito bem aventura, humor e drama (ao contrário do ótimo Dr. Estranho, que se perdia em piadas forçadas). Importante tematicamente, Capitã Marvel não é só um filme protocolar, ele é importante narrativamente também. Não ousa tanto quanto um Pantera Negra, mas também não segue a “fórmula Marvel” e este com certeza é seu maior mérito.
Thanos, que os deuses o tenham.