Dália Negra, de James Ellroy, inspirado em um caso real
Dália Negra foi escrito por James Ellroy, conhecido escritor policial, e é inspirado em um caso real. Em 15 de janeiro de 1947, o corpo mutilado, torturado e morto de uma jovem de 25 anos é encontrado largado em um terreno baldio em Los Angeles. Bucky Bleichert e Lee Blanchard são os policiais encarregados de investigar esse crime brutal.
Bucky logo se torna amigo de Lee e de sua namorada Kay Lake, ex-namorada de um gângster da região, preso por Lee. Os dois homens então mergulham nas partes mais obscuras de Los Angeles para descobrir quem, de fato, foi Elizabeth Short, a moça assassinada, conhecida também como Dália Negra.
A verdadeira Dália Negra, Elizabeth Short
Nascida em 24 de julho de 1924, em Boston, Elizabeth Short queria ser atriz. Quando ainda cursava o segundo ano do ensino médio, Elizabeth se mudou para Miami, onde conheceu o Major Matt Gordon Jr., de quem mais tarde ficou noiva. O casamento nunca se realizou, pois Gordon morreu em um acidente na Índia, em 1945.
Elizabeth se mudou mais algumas vezes, sempre em busca de empregos e sucesso, mas acabou na Califórnia, tentando ser famosa, depois de ouvir a vida toda que era bonita o suficiente para o cinema. Em 1947, ano em que foi assassinada, Elizabeth vivia em Los Angeles e ainda esperava a sua grande chance. Entretanto, de maneira irônica, ela se tornaria famosa não por sua carreira, mas pelo seu assassinato.
Em 9 de janeiro, Elizabeth voltou de uma viagem que tinha feito com Red Manley, um homem casado com quem ela vinha saindo. Segundo os depoimentos dele, ela foi deixada no Biltimore Hotel, onde iria encontrar uma de suas irmãs, que passava um tempo na cidade. Elizabeth foi vista pelos funcionários do hotel, falando no telefone, no lobby de entrada, então, do lado de fora de hotel. Depois disso, ela ficou desaparecida por alguns dias e só foi vista novamente já sem vida.
O que fez Elizabeth Short tão famosa?
Diversos casos de assassinatos acontecem todos os dias, especialmente nos Estados Unidos, mas de alguma maneira o caso de Short ultrapassou décadas e ainda é comentado. É tema de livros, filmes e séries ainda nos dias de hoje. É óbvio que não é possível dizer com clareza o que faz o caso da Dália Negra tão famoso, mas alguns aspectos do crime podem ajudar a entender o motivo de tanto alvoroço ao redor da história.
O primeiro é o fato de que o crime nunca foi resolvido e que é até hoje um mistério, embora a polícia tenha listado possibilidades e até tenha suspeitos, o caso nunca teve um desfecho oficial. Isso deixa milhões de possibilidades abertas e a, dessa forma, diversas teorias foram criadas a partir disso.
O segundo é o estado em que o corpo de Short foi encontrado. As feridas mostravam que ela tinha sido torturada e espancada; o seu rosto mostrava um corte que ia até as bochechas, simulando um sorriso sinistro; ela teve a pele de um dos seios arrancada, e nacos de peles retirados em várias partes do corpo. Para finalizar, o corpo dela foi cortado, literalmente, ao meio, na altura da cintura, dividindo o seu tronco e as suas pernas.
Um crime horrendo
Short foi desovada em um terreno baldio que era visível para muita gente e posicionada de uma maneira que lembrava fotografias eróticas da época. Os braços estendidos acima da cabeça e as pernas ligeiramente abertas. O assassino parece ter colocado as duas partes do corpo de maneira não paralelas, justamente para chamar atenção.
Com todas essas informações, é possível supor que o assassino queria que seu “trabalho” fosse visto e reconhecido, o que potencializa ainda mais a crueldade que foi infligida a Short antes e depois de sua morte.
O terceiro elemento que impulsionou o caso para a fama é a mídia, que chegou ao local do crime antes da polícia e pôde fotografar o corpo antes que ele fosse retirado. Sem qualquer respeito por Short ou pela sua família, os jornais divulgaram as fotos do corpo mutilado e inflaram os boatos que circundavam a vida e a morte dela. Foram os jornais que batizaram a mulher de Dália Negra, um apelido que ela nunca usou durante a vida, mas pelo qual ficou conhecida pela eternidade. Independentemente do motivo, o fato é que Elizabeth Short ainda é um dos casos mais misteriosos da história e que ainda inspira muito material de entretenimento.
James Ellroy
A história de Ellroy e de Short se ligam de maneira um tanto quanto sinistra. Ellroy, filho de pais separados, vivia com a mãe em Los Angeles. Eles tinham uma relação difícil e ele estava sempre esperando para passar um tempo com o pai. Em 1958, quando James tinha apenas 10 anos, sua mãe, Jean Ellroy foi assassinada enquanto o menino estava passando um final de semana com o pai.
Jean Ellroy foi estuprada e assassinada e seu corpo foi encontrado em um terreno. O culpado nunca foi descoberto. O assassinato da mãe, a princípio, não chocou tanto James, que em frente a esse fato, pensa que agora vai poder finalmente morar com seu pai, mas ao longo do tempo, é óbvio que ele não saiu ileso a tamanha violência. Em 1996, ele escreveu Meus Lugares Escuros, um livro que fala justamente sobre o assassinato de sua mãe. O livro é extremamente honesto e brutal, e o escritor não esconde nenhum detalhe sobre a sua vida pessoal.
Ellroy admite que sua relação com a mãe não era das melhores e que ele nutria por ela uma mistura de ódio e atração, que é relativamente comum em meninos de 10 anos. Os comentários de seu pai, que considerava a mãe uma “bêbada promiscua” também eram motivação suficiente para acirrar os sentimentos negativos que o escritor tinha pela mãe. Dessa forma, “Meus Lugares Escuros” é um livro chave para compreender Dália Negra, porque é lá que Ellroy explica como que surgiu sua obsessão pelo caso de Elizabeth Short e como ele se tornou o escritor que é hoje em dia.
Mortes semelhantes
Mesmo sentindo raiva da mãe, o jovem Ellroy começou a ter cada vez mais vontade de descobrir quem a tinha matado. Essa curiosidade acabou se tornando raiva e em “Meus Lugares Escuros” ele conta que fantasiava em descobrir o assassino de sua mãe e matá-lo. Foi só um passo para a obsessão com o assassinato de Jean se transformar em uma obsessão pelo assassinato de Short.
Os dois casos tinham muitas semelhanças: a região onde as duas viveram e morreram era próxima; as duas mulheres eram jovens e bonitas e o culpado nunca tinha sido descoberto. No entanto, o crime de Short era bem mais brutal que o de Jean e bem mais famoso.
Ellroy diz que nem se ele quisesse ele poderia escapar de se tornar um escritor de romances policiais, uma vez que a sua vida, é por si só uma trama do gênero. Ele não só viveu o assassinato da mãe, como também passou diversas vezes pelo lugar onde o corpo de Short foi encontrado, antes e depois do seu assassinato. Dália Negra é, sem dúvida nenhuma, o trabalho mais famoso de Ellroy e o próprio autor diz que esse é o livro que ele sempre quis escrever.
O livro
Embora seja baseado em um caso real, é natural que o autor tenha inventado em cima disso. Dália Negra tem diversos personagens fictícios e a trama por si só, não corresponde completamente à realidade. O protagonista de Dália Negra é Bucky Bleichert, um detetive da polícia que é encarregado de desvendar este caso. Como na vida real, dentro do universo do livro, o caso de Short é incomum e de uma crueldade extrema. Tanto Bucky, quanto seu parceiro Lee tem dificuldade de lidar com tudo que estão vendo.
A partir daí, Dália Negra segue um esquema muito clássico dos livros policiais. Bucky e Lee começam a investigar a vida de Short e quanto mais se embrenham nisso, mais percebem quanta gente poderosa pode estar envolvida com o assassinato. O leitor é apresentado a todos os aspectos da literatura noir que tem direito, como detetives, mulheres fatais, crimes brutais, corrupção, traição, gângsteres e obsessão.
Bucky, naturalmente, fica obcecado com Dália e acaba se envolvendo com Madeline Linscott, uma mulher rica que é extremamente parecida com Short. O livro de Ellroy tem reviravoltas e descobertas cada vez mais impressionantes e absurdas, que vão deixando o leitor preso às suas páginas. Ou seja, é impossível colocar Dália Negra de lado.
Universo noir
À parte do caso, também acompanhamos a vida pessoal de Bucky, que além de estar envolvido com Madeline, também está apaixonado por Kay, namorada de seu parceiro. Essa parte do livro é bem menos interessante do que a investigação e pode ser um pouco cansativa. Detetives com defeitos morais também são um clichê da literatura noir e por isso, é natural que também esteja presente no livro, mas o tema central é tão bom, que a história de Bucky, Lee e Kay soa chata e até um pouco irrelevante.
O fato de Dália Negra ser inspirado em um caso real deixa a sua leitura mais interessante e mais impactante. É natural que se termine a leitura querendo saber mais sobre Short e que o leitor também se torne tão obcecado por Dália quanto Bucky. É por isso também que Dália Negra é um livro assustador, já que não existe a perspectiva da ficção. Quando você lê um livro (ou assiste a um filme) de ficção de suspense, policial ou de terror, por mais cruel que ele seja, ele soa como coisa da cabeça do escritor, que para o leitor ou telespectador é apenas algum entretenimento.
No entanto, quando você entra em contato com algo real, é que de fato, se dimensiona o quão cruel é o que é retratado no livro. A Elizabeth Short de Ellroy pode não ser verdadeira, o escritor aumenta os tons de sua personalidade, de sua ambição e até de sua promiscuidade para que o livro se torne mais apetitoso, mas a questão que fica no ar é que de fato existiu uma Elizabeth Short e que ela foi torturada, morta e descartada de maneira brutal e ninguém nunca pagou por isso.
Leia aqui sobre o livro Lugares Escuros
Também é importante ressaltar que, embora Dália Negra seja inspirado em um caso real, ainda é um livro de ficção e não um livro investigativo. Existe pouca veracidade na versão de Ellroy e o final, que aponta um culpado e um motivo, não é nem um pouco real. O próprio Ellroy já veio a público dizer que ele não tem a menor ideia do que aconteceu com Short nos seus últimos dias de vida e muito menos de quem é o seu assassino.
Elizabeth Short na cultura popular
O fato é que por mais cruel que o crime tenha sido – ou talvez justamente por isso – o caso Dália Negra foi e ainda é inspiração para uma série de livros, filmes e séries e parece continuar tão popular quanto era na época. O livro de Ellroy é o único a tratar o caso como uma ficção, mas existem diversos livros sobre o assunto, inclusive de pessoas que apontam um suposto culpado. É o caso de Black Dahlia Avenger – The True Story, de Steve Hodel, que aponta seu próprio pai como o assassino de Short.
George Hodel, o pai de Steve, de fato é um dos principais suspeitos do assassinato de Short. Ele era médico, o que poderia explicar a quantidade de cortes com precisão quase cirúrgica que o corpo sofreu. Além disso, ele tinha uma obsessão por arte surrealista e mais especificamente pelo trabalho de Man Ray, de quem ele se tornou amigo. As fotografias de Man Ray muitas vezes mostram corpos femininos partidos ao meio e se olhadas com cuidado, podem facilmente nos remeter à maneira com que o corpo de Short foi encontrado (como as fotos do corpo de Short são extremamente pesadas, não vou coloca-las aqui, quem quiser comparar os trabalhos de Ray a cena de crime, pode achar fotos na internet).
Além disso, George Hodel já estava no radar da polícia antes da morte de Short, devido ao assassinato de sua secretária. E em 1949, Tamar Hodel, uma das filhas de George, acusou o pai de estupro. Hodel nunca foi condenado.
Cultura popular
O caso também foi tema de uma série de filmes, um deles, inclusive, inspirado no livro de Ellroy. Dália Negra é um filme de 2006, dirigido por Brian De Palma e estrelado por Josh Hartnett, Scarlett Johansson, Hilary Swank, Aaron Eckhart, Mia Kirshner e Fiona Shaw. O filme de De Palma é bem fiel ao livro e tem um clima assustador, capaz de deixar qualquer pessoa com medo. A Dália também aparece em Confissões Verdadeiras, Inkubus, Who Is The Black Dhalia?, The Black Dhalia Haunting, Dália Negra (2006), The Devil´s Muse, Instinto de Sedução, Pretty Hattie´s Baby, 20 Most Horrifying Hollywood Murders e Deddobôru.
Recentemente o livro de Fauna Hodel, sobrinha de Steve, filha de Tamar e portanto, neta de George, virou uma minissérie chamada I Am the Night, mas o caso de Short já esteve na televisão antes, em They Live Among Us, Perfect Crimes?, E! Mysteries & Scandals, Hunter, Case Reopened, Conspiracy e na primeira temporada de American Horror Story. Ela também foi tema de um jogo de videogame chamado Black Dahlia e aparece no jogo L.A. Noire.
Também é impossível não relacionar o caso de Short com o perfume Dahlia Noir, da Givenchy, que fez uma escolha um tanto quanto de mau gosto não só no nome do perfume, mas também no comercial que mostrava uma moça de cabelos escuros e roupas pretas (como Short costumava usar) se debatendo. Curiosamente a lingerie que a modelo usa no comercial tem uma divisão bem clara entre a parte superior e a parte inferior do seu corpo.
Perversão
O ser humano sempre se interessa por crimes sangrentos e de muita repercussão. Quando esse crime não tem resolução então, esse interesse facilmente vira um fascínio. Elizabeth Short vem vivendo dentro do imaginário popular há mais de 60 anos. Dessa forma, é saudável se questionar por que ainda somos tão obcecados com esse caso e quais os motivos que levam as pessoas a usarem uma jovem mulher vítima de um assassinato brutal como personagem em obras de entretenimento, que muitas vezes nem a representam de maneira realista.
Mas, entre todos os casos citados, Dália Negra, de James Ellroy parece ser o livro menos deplorável. Ainda mais quando se sabe de toda a história de sua vida.
Dália Negra se inspira em um crime terrível, mas se transforma em um romance policial tenso, assustador e com tramas que prendem o seu leitor do começo ao final. Ao seu termino, Dália Negra soa como uma redenção não só de Short, mas também de Jean e de seu autor.