Os Órfãos, filme inspirado no livro de Henry James
Os Órfãos é inspirado no livro A Volta do Parafuso (ou A Outra Volta do Parafuso, em algumas edições), de Henry James, e já é a sétima adaptação da obra para o cinema.
Kate (Mackenzie Davis) é uma jovem solitária que é contratada para ser tutora de Flora (Brooklyn Prince), uma garotinha órfã em uma enorme casa em Essex. Quando chega lá, ela descobre que Miles (Finn Wolfhard), irmão de Flora que acabou de ser expulso do internato, também vai estar na casa.
O comportamento de Miles, no entanto, é estranho e agressivo. E tudo piora quando Kate nota diversas coisas acontecendo na casa e que talvez eles não sejam as únicas pessoas vivendo lá.
Os Órfãos – O livro
Publicado em 1989, A Volta do Parafuso não tem a trama muito diferente de Os Órfãos, pelo menos, no seu início. A obra original também acompanha uma tutora contratada para cuidar de uma garotinha órfã em uma propriedade gigantesca e isolada. As únicas pessoas presentes na casa são a tutora, a criada e a garotinha, até a chegada de Miles, o filho mais velho que foi expulso do internato.
As coisas começam a ficar um pouco diferentes a partir daí. Primeiro que a trama do livro se passa em 1900, portanto existe algum sentido na ideia de uma garotinha que precisa de uma tutora e em um garoto que vive em um internato, afinal, nenhuma dessas coisas parecem comuns ou realistas nos anos 90, que é a época em que o filme se passa.
Em Os Órfãos, Miles foi expulso do internato por comportamento violento, já no livro, o garoto foi expulso por comportamento inapropriado ou indecente. O leitor nunca fica sabendo exatamente o que Miles fez, mas é possível imaginar quando se pensa no contexto todo.
Coisas sinistras
Não demora muito para que a tutora comece a sentir presenças estranhas. Além disso, ela se sente terrivelmente ameaçada por Miles. Embora ele seja um garoto, ele se comporta como um homem adulto e faz até insinuações sexuais para a tutora. Ela também descobre que a última tutora, Miss Jessel, foi embora sem deixar nenhuma explicação e mantinha um relacionamento sexual com um dos criados da casa, Peter Quint.
A coisa vai ficando ainda mais sinistra quando descobrimos que Miles era muito amigo de Quint e que ninguém sabe muito bem o que os dois faziam quando sumiam durante a tarde. Para os olhos da época, certamente os fatos estão um pouco velados, mas para os olhos atuais, a situação que James desenha é clara.
E estranhas…
Miles é um garoto que tem um comportamento claramente inadequado e que se comporta quase como um adulto. A tutora tem a impressão de que Miles sabe muito mais do que os meninos da sua idade deveriam saber. Embora o livro não deixe claro isso em momento algum, fica no ar que o criado pode ter molestado Miles ou pelo menos, deixado que ele assistisse alguns dos encontros dele com Miss Jessel, o que explicaria o comportamento do menino.
Para completar o quadro, a tutora atual é uma mulher reprimida em todos os aspectos, mas especialmente, sexualmente, como era comum na época em que o livro foi escrito. Assim, tudo isso vai se somando, nos fazendo questionar o que é e o que não é real em A Volta do Parafuso.
O filme
O filme, naturalmente, faz alterações na sua trama. Primeiro, ele se passa nos anos 90, o que traz um monte de questionamentos, como por exemplo, se alguém ainda contratava tutoras ou mandava os filhos para internatos. E, mais ainda, se alguma família, por mais rica que seja, consegue manter uma mansão daquele tamanho nos dias de hoje. Essas questões não são de todo ruins, uma vez que a própria Kate faz piada com essa ideia tão antiquada, como se dissesse que aquela família é estranha inclusive nesse aspecto.
Os Órfãos se inspira muito no clima do livro, tem uma aura sinistra que permeia o filme todo, mas que não é exatamente nova, já que existem milhões de outros filmes que beberam na fonte de James e que também usaram os mesmos elementos que ele e que aqui, por ser um filme atual, soam um pouco repetitivos.
Um grande problema do filme é que ele tira muito do significado do livro. Miles, por exemplo, apresenta um comportamento estranho, e em muitos momentos até parece que o filme vai seguir o rumo do livro, como quando ele invade o quarto da tutora durante a noite e a observa dormir, ou quando comenta que “seu amigo especial” acha a tatuagem dela sexy, mas ele pende muito mais para o violento do que para um garoto que está pronto para soltar uma frase sexual a qualquer momento. Isso tira da trama do filme a possível pedofilia do criado que é um dos pontos que mais valeria a pena ser discutido nos dias de hoje.
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O longa parece se despir também de toda a ideia de repressão sexual da tutora. Tudo bem que Kate é uma moça dos anos 90 que, pela lógica, teria uma relação mais saudável com o sexo do que a tutora do livro, mas a ideia não precisava ser totalmente descartada. Por outro lado, o filme acrescenta uma outra possibilidade para o medo que a tutora parece sentir o tempo todo e do qual ela foge como o diabo foge da cruz: uma mãe (Joely Richardson) que tem algum distúrbio mental e está internada em um hospício.
A loucura
Nesse sentido, Os Órfãos até faz um bom trabalho. Sabemos que a mãe de Kate está internada em um hospício e fica claro que a jovem teme acabar como ela. Quando ela chega à casa, logo começa a sentir presenças estranhas e ouvir vozes, mas ninguém mais ali parece saber do que ela está falando. Quando Miles chega, tudo piora de maneira óbvia. O menino é grosseiro com ela e a enfrenta o tempo todo. Claro que tudo que ele faz pode ser interpretado como uma crise de adolescente, mas não é o caso. O comportamento de Miles é, de fato violento, e em muitos momentos extremamente inapropriado.
Kate também tem a impressão de que as crianças sentem as mesmas presenças que ela, mas que isso não as assusta e muitas vezes, até as diverte. Miles parece conversar com um amigo imaginário para quem ele pede permissão para fazer as coisas, no entanto, quando Kate pergunta alguma coisa em relação a isso, ele desconversa e zomba da jovem.
Mais tarde, o menino ainda diz que sabe do que ela tem medo, quando nem a plateia entendeu muito bem o que está acontecendo, o que somado com o comentário da criada (Barbara Marten) sobre esperar que a doença da mãe de Kate não seja genética, faz o medo de Kate aumentar ainda mais.
Insanidade
Todo o cenário parece perfeito para desestabilizar a jovem tutora, uma vez que ela é uma moça solitária, com um medo patológico da loucura e se coloca em uma casa enorme e isolada, onde naturalmente, se sente ainda mais solitária. Quando as crianças e a criada parecem não entender sobre o que Kate está falando, ela vai sucumbindo cada vez mais dentro de sua própria mente e de seus próprios medos.
É a receita ideal para a paranoia. Dessa forma, o terror em Os Órfãos é relativo e embora esteja lá, depende da interpretação de cada pessoa. As crianças sabem de alguma coisa e não querem contar ou Kate está mesmo vendo coisas que não existem? Não é possível se ter certeza absoluta, e esse é o ponto alto do filme.
Aspectos técnicos
Os Órfãos é um filme de terror e se esbalda nos clichês do gênero. Primeiramente, Os Órfãos faz parte do gênero clássico das casas mal-assombradas, que também aparecem em obras como A Assombração da Casa da Colina e Casa Assombrada. Para isso é apresentado ao espectador uma mansão enorme, escura, silenciosa, com quadros sinistros, estatuetas assustadoras, um labirinto no quintal e uma parte da casa onde ninguém nunca entra. Tudo isso é muito clichê, nós já vimos isso milhões de vezes em diversos filmes, mas levando em conta que o livro de James é uma obra antiga e que essa fórmula ainda não estava batida, é possível relevar esses detalhes.
Isso tudo passaria batido se o filme tivesse uma trama forte, capaz de segurar até o final, mas não é o que acontece. O filme parece querer simplificar muito a obra de James e tira boa parte de seu simbolismo. Não seria interessante abordar a relação, no mínimo, estranha de Miles e Quint (Niall Greig Fulton), ainda mais nos dias de hoje, onde seria possível falar abertamente sobre pedofilia? O background da loucura, que apavora Kate é interessante, mas também seria interessante ligar a possível repressão sexual da jovem, com o que quer que tenha acontecido entre Miss Jessel (Denna Thomsen), Quint e Miles.
A dinâmica entre Kate e Miles é certamente um dos pontos altos, tanto da obra original, quanto do filme. Funciona bem aqui, mas poderia funcionar melhor se nos mostrasse uma jovem que tem medo de sexo e um garoto que já sabe muito mais sobre o assunto do que deveria. Dessa maneira, Miles seria uma ameaça ainda maior para Kate.
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É bom ressaltar, no entanto, que a produção de Os Órfãos é cuidadosa e bem-feita. O figurino de Kate se destaca da casa, uma vez que é muito claro ou muito colorido, enquanto a casa é escura. A tutora se destaca, inclusive das crianças, que também usam roupas escuras. Certamente para passar a mensagem de que Kate não pertence àquele lugar.
Sua aparência também vai ficando claramente pior enquanto os dias passam. O cabelo fica sujo e desgrenhado, as roupas amassadas e descuidadas e as olheiras de Kate aumentam visivelmente. Isso aumenta a sensação que temos de que a jovem está completamente entregue à casa e aos seus moradores, não importa a interpretação que você faça da trama.
O filme tem um bom clima, que deixa o público à espera de que algo ruim aconteça a qualquer momento. Além disso, é repleto de boas atuações, tanto de Mackenzie Davis, quanto das crianças. Entretanto, se perde no meio do caminho e não se sustenta até o final. Talvez em busca de fazer algo que atraísse multidões aos cinemas, a diretora, Floria Sigismondi, tenha perdido a essência da obra de James, que é extremamente interessante.
Com uma trama boa, mas que decepciona, Os Órfãos é um terror que poderia ser extraordinário, mas que se torna comum e muito parecido com o que já se viu. O filme entra em cartaz no dia 30 de janeiro.